Rua São João
Me mudei para a rua São João aos sete anos de idade. Saímos do Caramujo, bairro da periferia de Niterói, para morar em um apartamento alugado, no centro da cidade, que era dos meus avós. Eu e minha mãe, recém-separada do meu pai. A saída do morro produziu em mim um olhar diferente sobre as pessoas e sobre a própria cidade. Era meu batismo citadino.
O centro era um misto de bairro de passagem e moradia. Nosso apartamento ficava em uma área mais residencial e as ruas, ao fim de semana, serviam de lazer para a garotada. Esta foi a primeira coisa que chamou muito a minha atenção: o centro era cercado de áreas de lazer, de quadras, de campos, de praças e havia até uma vasta região litorânea, chamada de Vila Olímpica, para práticas desportivas.
O Fluminense Atlético Club, homônimo do tricolor do Rio, e o Clube Niteroiense, eram os meus preferidos. Ficavam perto da minha casa e tinham excelentes campos de futebol para um garoto da minha idade. Como quase todo brasileiro humilde, nasci louco pelo esporte bretão. E aqueles dois campos eram meu Maracanã particular. O Fluminense, na rua Xavier de Brito, foi mais glamoroso que o Niteroiense. Fundado em 1910, era conhecido como o Fluminensinho de Niterói. Foi, em seus tempos áureos, espaço de encontro da sociedade. Tinha uma estrutura de quadra e campo de futebol, piscina e salões sociais. Churrascos festivos e bailes eram comuns no clube, mesmo com o avançar de sua decadência. Por lá nadei, joguei futebol, fui a festas de aniversário, baile de carnaval e comi muitos churrascos regados à cerveja geladíssima, ao final das peladas de quinta-feira. Parte do meu lazer de recém-adolescente foi passado no clube tricolor.
Já o Niteroiense, situado onde hoje é o prédio do Tower, em frente à Prefeitura Nova, peguei em decadência absoluta. Sobrava apenas a área do campo de futebol e tínhamos sempre que pular o muro para jogar bola aos fins de semana. Dizem que por lá passaram alguns craques da pelota, como o jogador Edmundo, do Vasco, que nasceu em São Gonçalo e era assíduo frequentador das peladas antes da fama. O clube era também um espaço privilegiado para soltar cafifas. Taí outro hábito que aprendi no Caramujo e que no Centro encontrei muitos admiradores. Fazíamos até campeonato com a garotada vinda de outros bairros da cidade. Não era incomum ver, pelas ruas do Centro, garotos em disparada para recuperar uma cafifa cortada, vencida nas batalhas de linha de cerol, nos céus da cidade. Cafifa perdida era igual à bola de futebol isolada do campo, tinha sempre alguém correndo atrás.
A centralidade da minha casa era outro fator novo para mim. A rua São João fica a meio caminho, por assim dizer, da Zona Norte e da Zona Sul. Entre o que se convencionou chamar, na segunda metade do século XX, de área de baixo poder aquisitivo e alto poder aquisitivo, respectivamente. Tendo a Praça Arariboia como referência, o Centro era um bairro de trânsito para todos os cantos e de acesso a outras cidades próximas, como Rio de Janeiro e São Gonçalo. Niterói, à época, tinha mais de trezentos mil habitantes, o que era quase o número de pessoas que circulava pelo Centro todos os dias.
Com a melhoria financeira da família, graças ao meu avô ter conseguido um emprego de motoris- ta do Presidente da Caixa Econômica, a minha mãe e as minhas tias entraram como funcionárias do banco. Norma, Lourdes e Sueli, a escadinha etária das irmãs Diniz, são tributárias dessa sorte que tira uma família do limite da pobreza. A melhoria salarial fez as irmãs viverem um pouco o sonho da classe média. Fui matriculado no colégio Gay Lussac, uma escola de elite que homenageava o gran- de físico e químico francês. Ficava na rua José Clemente, em frente à livraria e papelaria Panorama, em uma área grande no Centro. A maioria dos alunos morava nos bairros da Zona Sul, Boa Viagem, Ingá, Icaraí e São Francisco.
De carro, transportados por motoristas ou pelos pais, os alunos da Zona Sul saíam direto das suas casas para a escola e muitos nem sequer colocavam um único pezinho nas calçadas do Centro. Aliás, eu desconfio que eles nem soubessem que estudavam no centro da cidade. Havia tam- bém pouquíssimos alunos de origem humilde, geralmente filhos de funcionários. Não me lembro de negros na minha sala. Talvez um amigo próximo, mas ele mesmo, por ser filho de juiz, e morar na parte rica da cidade, nos fazia acreditar que não tinha afrodescendência. Pela tenra idade ou pelo contexto dos anos 80, carecíamos do senso crítico e do ambiente politicamente correto, que marcaria nossa geração no começo do século XXI. Quase nenhum pré-adolescente se assumia como negro em ambiente tão hostil. Isso seria fazer parte de outro país, que ele não conhecia em seu cotidiano.
Certo dia, a distância social que me separava da maioria da turma deixaria sua marca. Tudo começou com um simples convite. Por ser bonachão (que garoto gordo, não é?) e adorar futebol, fui convidado por um amigo para ir ao seu apartamento, em Icaraí, de frente para o mar, almoçar depois da escola e jogar futebol na praia.
Vejam vocês, em que sinuca de bico entrei.
Meus amigos eram todos do Centro ou do Caramujo. Nunca tinha pisado na areia de Icaraí e tão pouco entrado em um apartamento luxuoso, de frente para a praia. Falei do convite para a minha mãe. Pecado mortal. E ela é do tipo que a única casa boa de visitar é a de parente muitíssimo próximo. Jamais me deixava dormir fora e raras eram as vezes que ia brincar em casa de amigos. Pois bem, ela me fez tantas recomendações, que lembro como se fosse hoje: “não abra a geladeira na casa dos outros”; “coma pouco e de boca fechada”; “olha, não entre no mar, é perigoso e mar não tem cabelo”; “atravesse no sinal, para aquelas bandas tem muito carro”; “vá com Deus e seu Tranca Ruas”, estes sempre me acompanhavam, segundo ela. Ufa, quase desisti de ir. O medo do novo, do diferente, era grande. Mas quando se é jovem… Fui.
Saímos da escola na sexta-feira, depois da aula que mais gostávamos, a de educação física. Eu, Davi e Alessandro fomos os convidados do almoço. Entramos no carro com o motorista de Calado. O homem, possivelmente um morador de comunidade ou do município de São Gonçalo, sabia na palma da mão o trajeto que fazia há três anos: descia pela rua José Clemente, entrava à direita na Rua Dr. Borman, seguia o fluxo pela rua da Conceição até a Marquês de Paraná. Na esquina do clube Rio Cricket, um reduto inglês fundado em 1897, e que até hoje tem um belo campo de futebol verdinho, dobrava à direita na rua Miguel de Frias e seguia reto até à Praia de Icaraí.
O prédio era praticamente colado ao Cinema Icaraí, um cine de rua que funcionava plenamente nos anos oitenta e era o xodó do bairro. Na entrada para a sala de exibição, havia uma suntuosa escada que levava a um amplo salão em estilo Art Déco. Os balcões na parte superior eram uma réplica dos teatros europeus antigos, onde ficavam a nobreza ou elites da burguesia no século XIX. No cine, gerações e gerações de niteroienses deram o primeiro beijo de novas famílias. Entramos na garagem do prédio e subimos pelo elevador social. Pensei em perguntar se o motorista não su- biria conosco para comer, mas percebi que nem do carro ele sairia. Dos três, eu era o único novato naquela cena de “rico”. Difícil foi segurar a ansiedade, sempre acompanhada com a vontade de ir ao banheiro.
Entramos fazendo barulho pela sala e logo a mãe de Calado veio em nossa direção pedindo que deixássemos o tênis sujo na porta. Bonita a mãe de Calado. Andava em casa vestida como se fosse a um baile de gala. A maquiagem sobressaía seus lábios carnudos e o vestido branco, com babados em renda, era transparente o suficiente para nos deixar corados. Lembro bem dela, Dona Claudia… A sala, bem, a sala era o dobro do apartamento dos meus avós, na rua São João. Dava até pra jogar um futebolzinho. Eu continuava com vontade de ir ao banheiro, mas a timidez inibia meus desejos fisiológicos. Claudia pediu para lavarmos as mãos, que o almoço estava na mesa. Fui feliz desanuviar minha palidez.
O almoço foi um dos momentos mais constrangedores que passei na vida. Fiquei em estado de contrição absoluta. A mesa tinha 16 cadeiras e tive dificuldade para escolher um lugar para me sentar. O prato era raso, grande e lindo, com desenhos do Egito antigo na borda. Havia também tantos talheres ao lado dele, que parecia um restaurante. Sentei à mesa pensando nas frases da minha mãe, “não faz falta de educação na casa dos outros, coma pouco e não abra a geladeira nunca…”. Aí começou o ritual. Ganhamos um prato fundo de sopa, em cima do prato maior, e um menor de pães franceses cortados ao lado. Olhei aquilo e pensei na minha avó falando que “sopa não mata a fome de ninguém”. Ficaríamos a tarde toda jogando bola na praia. Em minutos, devoramos a sopa rala. Quando achava que não vinha mais nada, uma senhora negra de vestido azul, avental branco e lenço na cabeça, trouxe o prato principal, um macarrão – que Dona Claudia chamou de pasta – para encerrar a refeição. Ia observando meus amigos comendo para saber que talhares utilizar. Calado pegou uma colher e passou a enrolar o macarrão com um garfo nela. Não estava entendendo nada. “Não vai comer, André?”, comentou Davi, portando um amplo guardanapo de pano aberto em suas per- nas. Tudo aquilo me deixava confuso. Em casa, minha mãe partia o macarrão com garfo e faca pra facilitar a mastigação e não sujar a roupa. Fiquei com vergonha de fazer o mesmo. Resumo da ópera: enquanto eles acabavam de comer e já se preparavam para a sobremesa, eu ainda catava com garfo pedaços de macarrão para enrolar na colher. Nem cheguei à metade do meu prato e desisti de comer. Não aceitei a sobremesa. Nunca tinha visto aquela nata branca em um potinho. Parecia uma papa de manjar que eu odiava. Chamaram de Panacota, uma sobremesa italiana. Fiquei com medo de não gostar. Minha avó falava que deixar comida no prato é falta de educação. Dissimulei dizendo que doce não era meu forte. Um gordo que não come doce, acho que soou hilário… Levantei da mesa com uma fome de cão. Escovamos os dentes e fomos para a praia jogar bola.
Era boa a sensação de descer de um prédio e em dois minutos pisar na areia. Icaraí era a Copacabana de Niterói, em proporção menor. O clima era o mesmo. Uma elite escolarizada, com poder aquisitivo alto, com aquele ar de que o mundo começa e acaba no meu bairro. O nome Icaraí deriva de Icarahy, água ou rio sagrado, em tupi-guarani. O Rio que deu nome ao bairro foi canalizado para o mar. O adensamento populacional, o maior do município, começou no bairro, no período pós-Segunda Guerra Mundial, com moradores da Zona Norte, de São Gonçalo e de municípios do Norte e Noroeste Fluminense migrando para a cidade. Não existe um niteroiense que não tenha na família ou que seja amigo de alguém que migrou do interior do Estado para a terra dos papas-goiabas, outro nome do morador da cidade. Niterói virou a queridinha dos moradores do interior pela estabilidade que oferecia perante a grandiosidade do Rio, de uma metrópole, com suas vísceras expostas constantemente pela mídia nacional.
Jogamos duplinha de praia. Era um jogo de dois contra dois. Dois chutavam e dois ficavam no gol. Caso a bola rebatesse, o jogador que chutou e seu parceiro poderiam tabelar até fazer o gol, enfrentando um goleiro e um zagueiro para defender seu arco. Eram três chutes por jogador e, quando a primeira dupla concluísse sua vez, ia para o gol defender os chutes da outra dupla. Jogamos durante toda a tarde, intercalando com deliciosos banhos de mar. As ondas eram diminutas, o que me deixou mais tranquilo pelas recomendações da minha mãe. Era uma época em que podíamos catar tatuí na areia, um bichinho gostoso que, bem lavado, para tirar a areia entranhada, e frito na frigideira, tinha até um leve gosto crocante de camarão.
Minha barriga roncava de fome. Calado chegou a nos convidar para lanchar em sua casa, mas desconversei, mentindo que ia andando para o Centro. Na realidade, queria muito era ficar sozinho para comer algo. Por precaução, minha mãe, sempre ela, havia me dado um dinheiro para o ônibus e o lanche. Enquanto os meninos voltavam para o prédio, caminhei em direção à esquina da Miguel de Frias com a Praia de Icaraí. Parei em frente ao lindo prédio da Reitoria da Universidade Federal Fluminense, projetado em estilo art déco pelo arquiteto Luiz Fossati, procurando um lugar para comer. Do outro lado da rua, quase colado ao boteco Chalé – no futuro seria um dos principais locais da cidade pra tomar meu chopp com muito colarinho, na pressão –, avistei uma lanchonete. Quando cheguei perto, o cheiro de salgados e sanduíches me deixou louco. Salivava igual a um cão à espera do osso. Comprei um italiano com queijo, cebola, presunto e uma Coca-Cola. Comi em segundos. Comprei outro e depois mais um. Ali, no Ponto Jovem, inaugurei a era do Italiano na minha vida. De tão cheio e já sem grana para o ônibus, resolvi ir andando para casa. Foram apenas 25 minutos, que minha mãe nem poderia imaginar.
O gosto pelo banho de mar libertou de vez minhas travessuras. Mantinha no Centro o hábito de brincar nas ruas no fim de semana. A própria rua São João não era movimentada como hoje em dia. Muito menos tinha um supermercado Guanabara para levar um mundão de gente às compras. Naquela área, esquina da São João com a Marquês de Paraná, havia um abrigo de bondes, que de- pois foi transformado em garagem da CTC, Companhia de Transportes Coletivos do Rio de Janeiro. Em minha gestão como secretário de cultura da cidade, o Guanabara comprou a área do governo do Estado e nós condicionamos o seu funcionamento à preservação das fachadas e à construção, no espaço do antigo abrigo dos bondes, de um complexo cultural. Hoje, o lugar é conhecido como Centro Cultural Antônio Callado, escritor ilustre da cidade, uma homenagem feita à época pelo prefeito Godofredo Pinto.
Voltando às ruas.
No Centro, brincava de futebol, bola de gude, cafifa, vôlei, taco. Talvez alguns não lembrem o que era jogar taco. Era um pastiche do cricket inglês. Era jogado em dupla. Cada dupla tinha um taco e uma lata de óleo vazia, que ficava dentro de um círculo. Mantinha-se uma distância razoável entre os jogadores e cada dupla tinha um jogador em uma posição: um tacava a bola para acertar na latinha do outro no chão, que era prontamente defendida pelo jogador que tinha o taco. Caso a bola fosse rebatida, o adversário poderia pegá-la, dar três passos em direção à lata e tacá-la de novo para tentar acertá-la.
Isso tudo, de certa forma, eu já fazia no Caramujo. A novidade mesmo, no Centro, era ir caminhando até a praia pra jogar futebol. Ia quase todo fim de semana, ainda escondido dos adultos, jogar duplinha ou mesmo uma pelada. Ia geralmente ao final da tarde pra não chamar muito a atenção. Durante o dia, muitas pessoas das redondezas e das comunidades caminhavam pelas ruas em direção ao único lazer em que o capitalismo ainda não conseguiu coibir a frequência de pessoas humildes.
Lembro bem das mulheres, homens e crianças de roupas de banho, corpos brilhando, dos pés à cabeça, de óleo de bronzear, água oxigenada no cabelo da perna e do braço, levando cadeiras, isopor e a indispensável câmara de pneu cheia para boiar com a família na praia. Alguns até levantavam um dinheirinho vendendo seus produtos. De fato, eram personagens escondidos no trabalho cotidiano, que ganhava visibilidade pelas ruas, com seu estilo de vida nos fins de semana.
Voltávamos da praia com um quilo de areia no corpo. Parecia um monte de coxinha de galinha caminhando pela rua. E isso, além de provocar um sorriso irônico nas pessoas com quem cruzávamos pelo caminho, gerava o problema de chegar a casa com a prova do crime no corpo.
A solução beirou a diversão: a sede da CEDAE, Companhia de Água e Esgotos, do governo do Estado, ficava na esquina da rua São João. Como a cidade vivia panes constantes de falta de água, o uso de pipas era frequente. E os enormes hidrantes, de mais de um metro de altura, que enchiam as pipas, ficavam no começo da minha rua. Fizemos amizade com o jovem Ascênsio, vigia da CEDAE, um negro imenso, de quase dois metros, gentil ao ponto de nos acompanhar nas comilanças de pão com mortadela e manteiga, sonho e pão doce, na padaria do Seu Amorim. Sua cumplicidade liberou de vez nossos deliciosos banhos, ao retornar da praia. O chuveirão tornou-se uma tradição da “turma da praia” e não ficava no corpo nem um pingo de areia.
O centro da cidade mudou minha vida para sempre. Novas amizades, novos valores, novos desejos e a leve desconfiança de que vivia em um país com muita gente com pouco e pouca gente com muito.
Para Papel, Fernando Cantelmo, Fábio Cantelmo, Cristiane, Marquinhos, Márcio, Fábio e Jonas de Jesus, Jalmizinho, Andreia, Bianca.