Marias
Das aparições no mundo, Maria ocupa o primeiro lugar. O ar da sua graça leva sempre o nome do local do milagre. Fátima, Aparecida, Conceição, Glória, são algumas referências que a população cultua.
A primeira Aparição foi em Portugal, no ano da Revolução Russa, em 1917, para três crianças camponesas: Lúcia, Francisco e Jacinta. Do contato seminal ficou o legado de adoração da sua ima- gem entre os católicos e os três segredos que Lúcia, a única das crianças a chegar à idade madura, guardou a sete chaves durante um bom tempo.
Fundamo-nos a partir de uma mulher, religiosa e republicana (é uma mulher que levanta a bandei- ra da França revolucionária no século XVIII). Coisa maluca nossa civilização, a idolatria pela imagem feminina guarda pouco respeito pelo mesmo universo feminino. Casos de violência e maus-tratos às mulheres, infelizmente fazem parte do nosso cotidiano. Vez por outra me pego pensando nesse antagonismo. Não seriamos, nós, másculos, produto de um sentimento de inferioridade colossal em relação a elas? Explico. Sem a mordida na maçã não haveria humanidade; sem o leite, a vida fenece; sem o desejo, o homem sucumbe ao estado natural – para mim, o desejo é feminino. Digo o desejo de lamber a cria, beijar o vento, degustar as pessoas, percorrer e entender o mundo. Justamente o oposto do desejo pecaminoso, construído por algumas religiões, e alimento perigoso de uma violência simbólica contra as mulheres.
O desejo feminino inaugura a humanidade. E nós, testosterona, onde ficamos? Antes fosse no divã, mas a massa encefálica de que somos moldados pouco permite o silêncio, a acomodação. Colocamos a coisa para fora, literalmente. Fomos constituídos para expor, exibir, aparecer. Dado cultural desnecessário. Advêm daí as mazelas masculinas.
Maria é o nome da minha filha. Haja gente para tantos desejos de Maria no mundo! No meu caso foi uma dupla homenagem. À avó materna das crianças, Maria de Fátima, e à minha mãe, Maria de Lourdes. A filha é apenas Maria. Perdi o sentido das aparições da santa no nascimento da minha primogênita.
Na umbanda, dependendo do local, Maria, a genitora, pode ser Yemanjá. São muitos santos católicos para poucas entidades sincretizarem. Acaba que uma entidade representa, vez por outra, mais de um santo. Não sei com quantos santos se faz uma entidade, mas que esta é mais transparente que os outros, não tenho dúvida. Assumir os defeitos é uma virtude na religiosidade afro. E me agrada quem erra. Desconfio dos puros de alma.
A imagem de Maria mais cativante da história é da Padilha, pombajira, feiticeira, encantadora de almas, cultuada na umbanda. Sua espiritualidade é materializada em um corpo sensual, sedutor, fazendo jus à fama de curar amores não correspondidos. Maria protege as prostitutas, gosta da noite e suas oferendas são uma verdadeira festa: cigarros, champanhe, rosas vermelhas, gargantilhas, batom, pentes. Não é difícil se identificar com ela. Sua história carnal apresenta uma divindade muito distante da vida pacata, de sacrifícios e penitência dos santos católicos. Se a imagem de Maria, a Padilha, tivesse a popularidade no Ocidente da imagem da Maria, a mãe de Jesus, seria nossa sociedade menos preconceituosa em relação às mulheres?
A mais misteriosa das Marias é a Madalena. Madalena vai de uma inverídica prostituta a uma suposta esposa de Jesus. Maria, por ser de Magdala, aldeia de pescadores na costa oeste do mar da Galileia, ficou conhecida como Madalena. A versão de Maria prostituta foi construída pelo papa Gregório I, no século VI, na sua seleção “natural” dos evangelhos a seguir. O intuito era mostrar uma pecadora redimida pela fé, após encontrar Jesus, e lavar seus pés com as próprias lágrimas no Monte Sinai (ato simbólico de sua submissão ao Cristo).
A tradição religiosa adora reduzir a mulher ao universo do pecado, a uma necessidade milenar de ser julgada, controlada e submetida aos designíos de um homem salvador. Creio que assim fica mais fácil justificar a opressão que, volta e meia, descamba para a violência física.
Já a outra versão de Madalena, aquela que ajuda Jesus, que vira sua parceira, é admirável.
Madalena transformou-se na mais devota discípula do cristianismo. E Jesus pouco escondia dos fiéis sua admiração e seu carinho por ela. Em alguns relatos da época, a proximidade corporal entre ambos é recorrente. Teria Jesus se casado com Madalena? O escritor Dan Brown, do famoso Código da Vinci, utilizando os evangelhos não adotados pela Igreja, os chamados apócrifos, popularizou a versão de que o apóstolo ao lado direito de Jesus na Santa Ceia não seria João e, sim, Maria Madalena. E, como Jesus não segurava uma taça, o cálice sagrado era a própria Madalena, grávida do seu filho. Será?
Um sonho renitente: nossa senhora descendo do céu, pouca luz no ambiente e a impossibilidade de perceber os brilhos de sua pele negra e a roupa bem justa ao corpo, saltando à vista culotes perfeitos. Ela olha para um grupo de pessoas, perplexas com a sua aparição, e professa:
— Me vê um cafezinho, por favor? Alguém viu o levado do menino Jesus por aí?
Para as Marias, Lourdes, Fátima e o produtinho das duas, Maria, a neta.