Candongueiro
Se você quer ser feliz Passar uma noite gostosa Curtir samba de raiz
(Tantinho da Mangueira, “Candongueiro”)
E mulheres maravilhosas Eu vou te dar a dita
Vê se desquagrandifica
Lá se encontram os faxineiros
Pra cantar samba de roda e não há moda Só no candongueiro
Um belo dia, Hilda e Ílton Mendes passeavam pela Estrada Velha de Maricá, em Pendotiba, Niterói, quando avistaram um terreno amplo com placa de VENDE-SE. Gostaram do ar bucólico da região e da casinha simples da roça.
Um ano depois, em 1989, motivados pelas festas constantes na nova casa, construíram um quiosque de sapê para organizar uns encontros de samba. Os convidados contribuíam como podiam.
Hilda e Ílton nunca poderiam imaginar que por ali surgiria um misto de casa-bar-centro cultural referenciado no universo do samba durante 25 anos: o Candongueiro (uma alusão ao tambor de timbre agudo do jongo e a dança de mesmo nome de origem afro).
Ílton era ambientado no meio do samba. Percussionista, havia tocado com a cantora Clementina de Jesus, uma voz das senzalas descoberta pelo poeta Hermínio Belo de Carvalho, em Mangueira. Aliás, seria a cantora a responsável por ele tocar pandeiro. Clementina soube que o grupo Vissungo, ao qual Ílton pertencia, iria acompanhá-la e não utilizava pandeiro. Foi enfática: “sem pandeiro, não canto”. Hilton deixou o surdo e foi pra casa aprender o novo instrumento. Nunca mais o largou.
Aos poucos, a nova morada do casal virou espaço de encontro de sambistas tradicionais. Ílton e Ilda repetiam o Zicartola, de Dona Zica e Cartola, no final dos anos 60 do século passado, no centro do Rio: ela ficava na cozinha fazendo os quitutes, a feijoada, a macarronada com galinha, o cozido, enquanto Ílton comandava a roda. A coisa pegou.
O casal resolveu levantar um “terreiro” para acolher melhor as rodas de samba. Foram três anos de obra. Sem dinheiro para tocar a obra com velocidade, Ílton ia se virando como podia: pegou parte
do material da obra recolhido de uma antiga igreja do século XIX, da cidade de Maricá. Conseguiu uns eucaliptos com um vizinho. Ia de caminhão transportar as toras de madeira até sua casa. As telhas coloniais, bem antigas, construídas por escravos, Ílton recolhia de casa em casa na região, oferecendo telhas novas em troca. A ideia central era criar um clima antigo para acolher o mais popular gênero brasileiro.
Conheci o Candongueiro ainda no começo, em 1989. Tinha 19 anos. Foi na roda de samba do Candongueiro, sobretudo, que construí minha relação afetiva com o universo do samba. Um dos momentos mais emblemáticos dos primeiros anos do Candongueiro foi quando o compositor Aniceto do Império, partideiro dos melhores, já muito debilitado em sua visão, se apresentou para um público atento e emocionado. O velho Aniceto de guerra mandava na roda, “Samba de partido alto/é sapateado/samba de partido alto/é sapateado…”. Lembro da atriz Zezé Motta lacrimejando de emoção. Acho que aquela foi a última apresentação do compositor em público. Morreu em 1993.
Montadas no centro do espaço com, no mínimo, dez músicos, que se revezavam com outros durante o aquecimento etílico, as rodas do Candongueiro produziam uma energia e uma simbiose com o público como poucas que frequentei. Por ali, pude constatar o que o saudoso Roberto Moura defende em seu livro “No princípio era a roda”: a roda seria anterior ao gênero e seu constante núcleo renovador. Depois de alijada, nos anos 70, das quadras da escola de samba, as rodas se renovaram em espaços como o Cacique de Ramos, com uma nova instrumentalização, novos timbres, com tantã, repique de mão e banjo adaptado para o samba pelo compositor Almir Guineto. A roda do Candongueiro misturava instrumentos tradicionais como o cavaquinho e o surdo, com alguns surgidos na década de 80, na Geração Cacique. Ílton não arredava pé da roda. Só levantava para ir ao banheiro. Gostava de controlar quem saía e entrava nela, e de manter o profissionalismo na troca dos cantores. Todos tinham que cantar.
Estava entre as três melhores rodas do país. E olha que eu era um rato de roda de samba. As pes- soas iam para dançar e cantar. Paquera existia, claro, mas o fundamental era festejar o samba na acepção ampla da palavra: lugar de encontro, de comida, de dança, de bebida, de felicidade. Havia um respeito muito grande pelos artistas convidados.
O entorno da roda era para as pastoras e para quem cantava o repertório religiosamente. Só ficava por ali a galera que conhecia do babado. Aventureiros mantinham-se distantes. Começava às dez horas em ponto, com choro puxado pela clarineta do jovem Ivan Mendes e, depois de seis horas ininterruptas de música, o vento soprava forte. Eu e a torcida do Flamengo tínhamos que beber rios de água para estabilizar e voltar pra casa.
Quando o espaço cultural, como gostam de falar seus fundadores, pegou sua forma definitiva, suas paredes foram ilustradas com caricaturas dos panteões (que palavra) do samba. Quem desenhava era o artista plástico Floriano Carvalho. A bandeira do MST (Movimento dos Sem Terra) tremulava pendurada no teto. Tinha até uma praça batizada de Che Guevara. Isso já era um aviso. Um aviso para as pessoas que chegassem por lá, a fim de balada, no fluxo da moda, saberem que a roda era de samba de raiz e não de pagode e que a casa tinha posicionamento político.
Já sei, leitora, já sei que a linha é tênue entre pagode e samba, entre samba e axé, etc. etc. Só que o discurso em defesa do “samba de raiz” surgiu como um contraponto ao sucesso midiático do pagode paulista e carioca, com os grupos Molejo, Raça Negra, Só pra Contrariar… Segundo os críticos, olha que bonito, “do lugar de fala do samba de raiz”, esses grupos utilizavam instrumentos inadequados, como bateria, guitarra, baixo. Usavam roupas que mais pareciam dançarinos de soul music e suas letras eram repetitivas e pobres musicalmente. Na realidade, o “samba de raiz” é mais um posicionamento político, para criar identidade de grupo, do que qualquer outra coisa.
O perfil de artista da “curadoria da casa” era seleto: Beth Carvalho, Luiz Carlos da Vila, Tantinho da Mangueira, Wilson Moreira, Nei Lopes, Ratinho, Monarco, Velha Guarda da Portela, Velha Guarda da Mangueira, Nelson Sargento, Camunguelo, Moacyr Luz, Aldir Blanc, Barbeirinho do Jacarezinho, Dunga, Marquinho China, Serginho Procópio, Xangô da Mangueira, Paulo César Pinheiro, Roberto Ribeiro, Marquinho Diniz, Wanderley Monteiro, Iracema, Dona Ivone Lara, Aniceto do Império, João Nogueira, Zé Keti, Toninho Geraes, Luiz Grande, Walter Alfaiate e Efson. Este era um show à parte. Quando pegava o microfone para cantar, subia na mesa e começava a tremer as pernas e balançar os braços para frente e para trás. Um dos seus clássicos era “brilha pra mim / mais uma vez, olha pra mim… Te procurei (vai, vai!) / entre as estrelas do sem-fim / que maravilha sideral / seja meu bem, seja meu mal…”.
Dia de Candongueiro era dia especial e esperado com ansiedade. As rodas, tradicionalmente,
rolavam aos sábados de 15 em 15 dias. A fila era homérica para entrar. Se chegasse depois da meia-
-noite, dificilmente entrava. Por frequentar a casa desde o começo, ganhei uma carteirinha, amarela, de convidado, tipo VIP. Tenho até hoje, mas nunca usei. Eu era vereador e preferia enfrentar a fila como todo mundo. E vocês acham que esse pudor adiantava? Quando estava na boca da entrada, sempre chegava alguém pra pedir: “oi André, você que conhece todo mundo, põe a gente pra dentro, por favor, por favor…” Desnecessário dizer que o tempo passado na fila era negligenciado por quem me via na porta. Cheguei a ficar do lado de fora várias vezes para não ter o privilégio de entrar com vários amigos sem ingresso. Eu me divertia apenas ouvindo a roda e bebendo uma gelada nos camelôs, geralmente vizinhos do Candongueiro, que montavam suas barracas de bebidas e comidas. Nós já éramos da casa. O afluxo de gente fez vários moradores utilizarem seus terrenos para estacionamento. Bom para eles, que levantavam uma graninha nos fins de semana de samba.
Vez por outra aparecia um “televisivo”, como Ronaldinho Gaúcho, Camila Pitanga, Leandra Leal, Alessandra Negrini. Até os “globais” eram “vigiados” para saber se conheciam os sambas e se da- vam o recado no pé. Adorava encontrar o craque Zizinho nas rodas. O melhor jogador que Pelé viu atuar, segundo o próprio rei do futebol. O craque da Copa de 1950. O maior nome do meu Mengão antes da era Zico. Zizinho era um apaixonado por samba.
Virava e mexia realizava o lançamento de um livro meu, no Candongueiro, aos sábados que não tinham samba. Convencia a editora a bancar as rodas, a estrutura e convidava Deus e o mundo. No lançamento do Almanaque do Samba, da Editora Zahar, em 2006, convidei Moacyr Luz, Cristina Buarque, Nei Lopes, Wilson Moreira, Nelson Sargento. E lá estava o “Mestre Ziza”, com seu sorriso aberto, brincando na roda feliz como um garoto que acabara de ser contratado por um grande clube carioca.
A casa, em sua última obra, suportava 700 pessoas. Ir ao banheiro, dependendo do ponto em que se encontrava, virava uma via-crúcis. O tempo era calculado milimetricamente. As pessoas queriam falar, dançar e as paradas eram inevitáveis. Confesso que algumas vezes cheguei no banheiro com a torneira vazando. Por isso, gostava de ficar perto do bar e do escritório do Wanderley Cardoso (WC). Apesar da oferta generosa de cachaça, não me atrevia a caminhar pelas branquinhas. Bebia cerveja, revezando com caipivodka.
Dia de Candongueiro era dia de se preparar desde cedo: ligar para os amigos, combinar encontros e começar o aquecimento ao final da tarde. Com o tempo, passei a ver vários alunos meus, do velho ensino de primeiro grau, frequentando o espaço como estudantes de medicina, história, filosofia, direito. Gostava de vê-los, gostava de saber que minhas aulas deixaram esse legado cultural. O Candongueiro construiu laços de solidariedade entre as pessoas. Um repertório sentimental, uma lembrança de que o samba é muito mais que um gênero musical. É, na melhor tradição afro, uma contemplação da vida, em todos os seus sentidos estéticos.
Para Hilda, Ílton e Ivan Mendes, Diogo Cunha, Juliana Carneiro, Gustavo e Guilherme Carvalho, Fabio de Jesus, Carol Verani, Viviane Nielsen, Alexandre Carapeticow, Lia Baron e Danielle Nigromonte.