Flamengo até morrer…
Já morava no Centro de Niterói há dois anos. A adolescência era latente nos meus atos “libertários”, digo: matar aula, reclamar de tudo e trocar o dia pela noite, e no meu bigodito ralo. Tive uma criação um pouco distante do meu pai. Ele morava em São Gonçalo, cidade limítrofe com Niterói, e trabalhava no Batalhão Rodoviário de Tribobó. Depois foi transferido para o Batalhão Florestal, um meio caminho entre Niterói e São Gonçalo, na Rodovia Amaral Peixoto. Meu pai, antes da fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio, era bombeiro militar. Depois da fusão, houve a possibilidade de funcionários militares dos dois Estados optarem por mudança de corporação. Izaquiel Inácio da Silva preferiu ir para a polícia militar, como seu irmão Orlando. Falo aqui dos dois Estados e tenho uma ligeira impressão de que a(o) leitora(o) mais jovem não tem as devidas informações da época.
Desde a Proclamação da República o Rio era a capital do país, município neutro, e a província do Rio de Janeiro virou Estado do Rio. Com a mudança da capital do país para Brasília, em 21 de abril de 1960, as elites do Rio resolveram pressionar o poder público para criar o Estado da Guanabara. O medo era que a ex-capital perdesse seu status político e sofresse um avassalador esvaziamento econômico. Um déjà vu desnecessário de nossos mandatários. O Rio passou a ser a única cidade-estado no país. O resto da província continuava conhecida como Estado do Rio, com a capital na cidade de Niterói.
Anos depois, em 1974, durante a ditadura civil-militar chefiada pelo Presidente Ernesto Geisel, houve a fusão dos dois Estados com a manutenção do nome Estado do Rio de Janeiro e a capital na cidade do Rio de Janeiro. Foi nesse contexto que meu pai deixou de ser bombeiro, “um soldado do fogo”, e optou por ingressar na Polícia Militar.
Lembro-me, ainda bem pequeno, talvez com cinco anos de idade, de meu pai me levando até o glamoroso Quartel dos Bombeiros de Niterói, hoje centenário, na rua Marquês de Paraná, para brincar na quadra de futebol que fica na parte de trás. Nem imaginaria que aquela quadra faria parte da minha adolescência aos domingos, em peladas antológicas com a turma do Centro, do bairro de Fátima e de São Lourenço. E tampouco que, já adulto, com uns trinta e dois anos, teria o privilégio de pesquisar no arquivo da histórica banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, no Campo de Santana.
Destaque desde o início das gravações no Brasil, em 1902, a banda tinha um acervo precioso, que carecia de organização, catalogação e digitalização, preservando a sua memória musical. Surgiu dessa experiência a biografia do maestro Anacleto de Medeiros, lançado pela editora Zahar.
Anacleto foi o fundador da banda e o responsável por levar para a agremiação inúmeros chorões cariocas. Os chorões eram músicos instrumentais de alta qualidade, como Irineu de Almeida, mais conhecido como Irineu Batina, professor de música de Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, autor com Braguinha do imortal “Carinhoso” e principal nome na história do choro.
Tive a felicidade de dedicar o livro à memória do meu pai e aos “soldados do fogo”, verdadeiros defensores da vida.
Só que eu gostava mesmo era de subir no carro da escada Magirus no quartel dos bombeiros de Niterói. Aqueles degraus pareciam feitos para as crianças. Meu pai, com suas mãos extremamente fortes, me segurava firme. Certamente pensava que uma queda minha da escada faria minha mãe enlouquecer. Outra brincadeira predileta era descer pelo tubo de ferro que saía do alojamento dos bombeiros para o solo. Quando a sirene tocava, rapidamente os soldados colocavam as suas roupas e desciam pelo tubo quase dentro dos carros. Um dia meu pai me deixou ligar a sirene, rapidamente. Foi o melhor presente que ganhei. Nunca vi papai saindo para apagar incêndios. Creio que ele, à época, só fazia trabalhos burocráticos.
Minha adolescência florescia a passos largos. As ausências do meu pai, só compreendi quando fiquei mais velho. Tenho uma leve impressão de que ele ainda mantinha um encantamento secreto pela minha mãe. Não havia absorvido de todo a separação.
A percepção do problema na maturidade se contrapunha à certa indiferença da relação na infância. Nós, quando crianças, criamos imunidade por instinto. Somos animaizinhos procurando sobreviver na selva. Como a vida imita a política, ou vice-versa, não há vácuo de poder que não seja preenchido por alguém. Outras pessoas ocuparam no decorrer da minha existência a ausência da figura paterna. Ao menos o meu complexo de Édipo fugiu aos cânones tradicionais…
Meu pai era tricolor. Não lembro se fervoroso. À luz do tempo, me parece que ele ligava pouco para futebol. Gostava de samba, de cantar, de beber em botecos – o último reduto de sociabilidade do mundo, segundo o compositor e escritor Aldir Blanc. Ele gostava tanto de botequins, que me deixou o gosto por eles como herança. Agora, futebol… e ainda por cima Fluminense, não combinava com ele. Meu pai era de morro, militar de patente baixa, filho de negro e índia. Torcer por um time de classe média carioca era um paradoxo. Só os mistérios do esporte mais popular do mundo para explicar a escolha. Infelizmente não tive a oportunidade de perguntar o porquê da opção pelo time das Laranjeiras. Papai faleceu cedo, no ápice da maturidade, em um brutal acidente de carro. Fiquei sem resposta para muitas coisas que o avançar da idade deixou em minha porta.
Minha mãe foi mais classista que meu pai e fez jus às suas origens ao torcer pela cruz de malta da colina. O clube Vasco da Gama entrou no cenário do futebol em 1916 e, em 1923, já figurava na divisão principal. Quatro anos depois, o Vasco construiu seu estádio no bairro operário de São Januário, em resposta ao Flamengo, Fluminense e Botafogo, clubes oriundos da atual Zona Zul carioca que alegavam que, sem estádio, o Vasco não poderia participar da elite do futebol do Rio. O time de negros e brancos pobres fez uma grande mobilização financeira com seus torcedores para construir o maior estádio da América Latina e deu um soco no estômago do preconceito racial e social da época.
O estádio de São Januário ganhou tanta importância simbólica, no universo operário, que o Pre- sidente Getúlio Vargas proferia nele seus inflamados discursos trabalhistas, no 1º de maio, data comemorativa do Dia do Trabalhador.
Eu tomei outro caminho no futebol. Minha tia Sueli, irmã mais nova da minha mãe, era casada com Léo Lorenzi, um professor de educação física e ex-jogador de futebol. Seu pai fora auxiliar téc- nico da seleção brasileira, Lorival Lorenzi, e Léo, quando jovem, jogou no Ferroviário Atlético Clube,
time de origem operária de Fortaleza, na Portuguesa (Rio de Janeiro) e parece que chegou a fazer teste para o Flamengo, quando foi obrigado a parar de jogar para operar o joelho. Era uma época em que a medicina carecia dos “milagres” de hoje em dia, quando um jogador gravemente lesionado consegue voltar ao campo com boa desenvoltura. No futuro, jogaria com Léo aos sábados, na Praia de São Francisco, em frente ao Bar Luiz, onde aprendi a tomar chopp e conheci o “canhão” que ele depositava em sua perna esquerda. Batia falta de trivela como ninguém. Foi Léo que consolidou em mim o gosto pelo manto rubro-negro.
Claro que já tinha uma pré-disposição para torcer pelo time da Gávea. O Flamengo era um time de massa, interclassista. Minha mãe era devota do Vasco, mas canalizava sua energia para resolver outros problemas na minha criação. Não entrava nessa disputa. Já Léo era Flamengo roxo. Daqueles de ouvir rádio cotidianamente e sacanear os adversários a semana inteira, quando o rubro-negro ganhava. Com uma filha pequena, chamada Marcela, e um filho bebezinho, meu primo Marcelo, Léo me levava em suas andanças pelos bares, sambas e peladas. O garoto boleiro tinha grande admiração pelo passado do tio e gostava de ficar ouvindo a conversa dele com os amigos. Um em especial, o professor Adri, tentou durante um bom tempo me ensinar a tocar surdo. Custei a entender, coitado, que minha praia era outra.
Era o ano de 1980. Depois de um longo e tenebroso inverno, os exilados voltavam aos poucos para casa, cheios de saudades dos seus filhos, maridos, esposas, avós, irmãos, amigos, ao som do “O bêbado e a equilibrista”, música de Aldir Blanc e João Bosco, que virou um hino da época, na voz da notável Elis Regina. A abertura política do regime ditatorial seguia de forma lenta e gradual, tutelada pelos militares e por setores da elite golpista. A sociedade, respirando mais aliviada, voltou a se reorganizar em sindicatos, associação de moradores, novos partidos políticos e blocos de carnaval. A demanda reprimida por reuniões, encontros, debates, festejos, parecia bem óbvia.
A torcida do Clube de Regatas Flamengo também passou a sonhar com um cenário mais alvissareiro para seu time. Eu me recuso a chamar apenas de time o Flamengo da década de 1980. Era um selecionado. Capitaneado pelo craque Zico, no auge dos seus 27 anos, a seleção tinha como base Raul, Leandro, o peixe, Mouzer, Marinho (Figueiredo), Andrade, Júnior, o capacete, Lico, Adílio, o Neguinho da Cruzada, Nunes e Tita. Esse time, com mudanças aqui e acolá, foi comandado por Claudinho Coutinho (1980-81) e Paulo César Carpegiani (1981-1983). O selecionado foi campeão de quase tudo: tricampeão brasileiro (1980, 82 e 83), campeão da Libertadores (1981), campeão Mundial de Clubes (1981) e campeão carioca (1981). Era impossível gostar de futebol e não se encantar com o Flamengo.
Foi em 1980, aos dez anos incompletos, que começou minha paixão duradoura pelo manto sagrado.
Estava com meu tio na famosíssima padaria do Seu Amorim, um português para lá de tradicional, bem caricato, que gostava de tamanco e de namorar as meninas novas adoidado, na madruga em sua padaria. Rolava um churrasquinho e o tradicional samba de três instrumentos, sem violão e cavaquinho. Era sofrido. Meu tio conversava com os amigos efusivamente, em papos regados à cerveja tipo canela de pedreiro – gelada até a alma –, sobre a final do campeonato brasileiro entre Flamengo e Atlético Mineiro, no próximo domingo, dia 1º de julho, às 17h, no Estádio Mário Filho, Maracanã. Flamengo disputava à vera seu primeiro grande título nacional. Precisava, e muito, da
força da sua torcida.
Na primeira partida, no Mineirão, o Fla perdera por 1X0. Como teve a melhor campanha na semifinal do campeonato, bastava uma vitória simples para conquistar o título inédito. Fiquei com as orelhas em pé e ligadão na conversa dos adultos sobre o jogo. “Vamos organizar alguns carros pra levar a galera”, orientou Serjão, um negro extremamente simpático que, além de ser da turma, era meu auxiliar no colégio Gay Lussac, no Centro. “Acho melhor contar o pessoal e colocar todo mundo em um carro só”, observou Carlos Alberto. “Talvez Carlinho tenha razão”, arrematou meu tio, “aqui ninguém bebe água de passarinho e ir com vários carros é temerário. Quantos somos? Oito… Sete. Vamos todos na Kombi de Salgueirinho. Algum problema, Salgueiro? Então fazemos assim, rachamos a gasosa, o estacionamento e as cervas pra Salgueirinho.” Em tempo: Salgueirinho era um figuraça. Daquelas pessoas que você conhece com idade avançada e 30 anos depois continuam do mesmo jeito. Salgueirinho era professor de educação física, de corpo apolíneo e, sempre que me via, pedia para dar um soco na sua barriga. “Tá vendo, garoto, sua barriga tem que ficar assim, dura, rígida. Olha que bebo bem. Mas faço mil abdominais todo dia.” Eu achava aquilo hilário e muito distante da minha realidade. Fui profético.
Fiquei com os olhinhos brilhando para falar com meu tio. Só que a agitação do grupo dificultava a oportunidade. Achei melhor esperar saírem um por um dos seus amigos e conversar no final. Meu tio sempre ficava para apagar a luz da festa. Só bebia nos fins de semana. Hoje em dia não consigo imaginar alguém que só beba nos fins de semana. Saía de casa de manhã, bebia até uma hora da tarde, ia pra casa comer e tirar uma soneca e depois voltava pra beber no final da tarde. Fazia um périplo por bares específicos da cidade e sempre terminava a ronda etílica na padaria do Seu Amorim. Léo estava sentado sozinho na mesa. Quando fui a sua direção, se levantou para ir ao banheiro.
Cerveja pesa, amigos. Percebi que o vento estava forte e as pernas já queriam fazer aquela jogada à lá Jânio Quadros, na foto histórica reproduzida aos borbotões nos livros de história. Era a hora de abordá-lo. Quando saiu do banheiro, enchi o peito de coragem e pedi para ir com eles ao Maracanã. Léo se sentou na cadeira, acendeu um cigarro, pensou um pouco e disse que, por ele, tudo bem. “Difícil será convencer sua mãe”, balançou a cabeça descrente. Isso eu faço, deixa comigo.
Nascida em Niterói, minha mãe é daquelas que diz “mar não tem cabelo”, “fico tonta quando atravesso para o Rio”, “Maracanã é lugar de bebida e confusão.” Sentiram meu drama, né? Só que aporrinhei tanto a ‘véia’, que ela acabou cedendo com milhares de observações para meu tio atônito. Até hoje considero a sua decisão um verdadeiro milagre. Lourdes deveria ser canonizada.
Saímos de Niterói no domingo, às 14h. Eles gostavam de chegar cedo pra fazer o aquecimento na gelada. A Kombi. Aí, a Kombi, senhoras e senhores, era quase um patrimônio da humanidade. Seu branco encardido deixava sobressair as ferrugens expostas. Meu medo era alguém encostar e pegar tétano. Na ponte Rio-Niterói, o bichano parecia que ia se partir em dois com o vento forte ou quando passava na junção das pistas. Mas as cantorias, bandeirolas para fora, a animação da turma, apaziguavam meu medo.
Descemos pela Leopoldina até o final e viramos à direita, em direção ao Maracanã. Ali vi a di- mensão da multidão pelo volume de carros e pessoas andando pelas ruas. Era meu primeiro jogo no Maracanã. Subi a rampa do estádio numa alegria sem fim, entre cantos e gritos de guerra. “Isso aqui é Flamengo”, pensei. Fomos em direção ao Fla-bar. A turma só ficava por lá. Motivos óbvios.
Era uma torcida que assistia ao jogo em pé e com copo na mão. Uma espécie de botequim dentro do Maracanã. Quando entramos no patamar superior, passamos pelo curto corredor até avistar o gramado verdinho e mais de 150 mil rubro-negros. Fiquei todo arrepiado. Eu me imaginei pisando naquele gramado, lançando a bola, cobrando um pênalti, fazendo um golaço. Mal podia acreditar que debutara, enfim, no Maracanã.
Quando o elenco do Flamengo saiu do túnel e entrou em campo, explodi de felicidade junto à torcida. É indescritível a emoção de um estádio cheio para um neófito garoto de dez anos. Em mo- mento algum deixei de pular e cantar. Parecia um torcedor veterano. Aos sete minutos do primeiro tempo, Nunes balançou a rede para o Fla. A felicidade durou pouco, o craque Reinaldo empatou um minuto depois. Zico desempatou no finalzinho do primeiro tempo. O intervalo foi longo. Queria comemorar logo o título. Outra vez Reinaldo marcou na primeira metade do segundo tempo e jogou um balde de água fria na torcida. Passei a sofrer de verdade. O jogo caminhava para o final. Perce- bi na pele que flamenguista é bicho obstinado em torcer, vai até o fim gritando, incentivando. E o improvável aconteceu: Nunes recebeu a bola pela esquerda, na beirada da área. Parou. Balançou o corpo ora pra direta, ora pra esquerda, em frente ao marcador. Resolveu ir pela esquerda, deixou o adversário pra trás e na saída do goleiro João Leite, num pequeno espaço, encobriu o arqueiro e fez um golaço aos 37 minutos. Loucura total. Garoto realizado. Mengão campeão brasileiro de 1980!
Na volta pra casa, a Kombi parecia um ônibus leito, com ar-condicionado, de tanta felicidade.
Para Izaquiel Inácio da Silva, Léo Lorenzi, Salgueirinho, Adri, Carlos Alberto e Serjão.