Cemitério
Minha avó que apaziguava a minha insônia. Sem nenhuma intimidade com a palavra escrita, mas cheia de sabedoria na palavra oral, vovó contava histórias para que eu tivesse o sono dos inocentes. Emília pouco percebia os calafrios exalados das minhas finas canelas, ao iniciar o repertório de contações, digamos, misteriosas. Ela imaginava que a sua voz garantia a minha tranquilidade. Ledo engano. A afeição e a curiosidade que eu demostrava pelo tema era mais por defesa do que por interesse, muito mais para criar intimidade com o que apavora do que por admiração.
Todo dia de finados íamos visitar os mortos no cemitério do Maruí́, no Barreto, em Niterói. No meio de um mar de gente, eu entendia pouco o nosso papel naquela casa sem distinção de classe, credo, etnia, sexo – digo, do chão para baixo. Ficava mais curioso em ver as fotos nas lápides com as datas, calculando quantos anos o defunto teria hoje e imaginando como fora a sua vida.
Certa vez, fomos visitar meu avô recém-falecido. Ao passar pela entrada do cemitério, avistei uma cova coberta de flores com centenas de pessoas ao redor. Fiquei intrigado. Ia andando com os adultos, mas com a cabeça virada para trás, mirando aquela cena estranha. O que fazia toda aquela gente ali? Só percebi que o retrato exposto em cima da lápide era de um menino mais novo que eu. Tentei, infrutiferamente, perguntar algo para minha mãe. Minha avó também deu de ombros. Os meses passaram.
Deitado no colo da minha avó, alta madrugada, fiz a pergunta engasgada no tempo: “Vovó, lembra quando fomos visitar meu avô no cemitério? Por que no túmulo daquela criança tinha tanta gente?”. Ela olhou séria, pegou minha mão direita entre as suas mãos enrugadas e disse: “Você quer ouvir uma história comprida? Uma história que aconteceu de verdade?”. Meus olhinhos brilharam, numa mistura de medo e curiosidade.
Minha avó era uma boa brasileira. Sempre foi regida e moldada pelo valor do trabalho honesto. Pobre, em país de desiguais, carregava em sua carcaça uma das características do nosso povo, a miscigenação religiosa. Batizada na Igreja Católica pelejava em Centros de Umbanda, comparecia às matutinas missas dominicais, mas seguia religiosamente o mando afro da cor branca, às sextas-feiras. Não havia confusão mental em suas opções. Tudo era muito natural. E assim seria até sua
morte. Falo isso porque facilita aos leitores entenderem o que vou dizer a seguir.
Segurando as minhas mãos com a força de quem segura alguém em perigo, vovó preparou um clima diferente para começar a história. Nunca vira tamanho zelo em suas palavras. Parecia que seus dentes eram frágeis cristais, obrigando-a a expressar as palavras de forma clara, como um exercício preparatório para o canto. Estávamos sozinhos em casa. Só nós dois, e Deus, como ela costumava dizer…
“Eu era quase da sua idade. Foi a primeira vez que vi aquele túmulo com a minha mãe”. A frase me cortou ao meio. Como assim? Minha avó já vivera aquela experiência?
“Carlinhos morrera há menos de um mês daquele dia 2 de novembro de 1930. Era um menino muito querido no bairro. Filho de operários da Companhia Manufatora Fluminense, uma das grandes empresas a se instalar no bairro do Barreto, cativava as pessoas pela simpatia e pelo sorriso expansivo. Olhando para sua incrível vitalidade e alegria de viver, ninguém imaginaria a tragédia que aguardava a família Nogueira. Uma pena, Deus chamar tão cedo uma de suas obras-primas, mas Deus sabe o que faz e só eu não imaginei o que aquela morte faria comigo.”
Agora fui eu que não deixei a mão da vovó escapar da minha. Quase dava para ouvir meu coração batendo forte!
“Chegando ao cemitério, observei a foto na lápide e a multidão prestigiando a passagem de Carlos Tortelly Nogueira. Desgarrei da minha mãe e fui atraída como um ímã para a borda do túmulo. Nada fazia mais sentido, ou melhor, o único sentido que eu tinha era a imensa vontade de estar ali ao lado daquele caixão do meu tamanho. Cheguei a me sentir tonta. Um sentimento de afeição e de tristeza tomou conta de mim, lágrimas escorriam do meu rosto – sem parar. De súbito, uma mão me segurou pelo braço e só ouvi a voz carinhosa: ‘Emília, vem, filha, deixe os parentes se aproximarem, meu amor’. Voltei à realidade.”
“Vovó, como a senhora…”
“Espere meu filho, não faça perguntas ainda. Escute e deixe-me contar como Carlinhos morreu. Lembrar disso me emociona, é preciso me concentrar para explicar os detalhes. O bairro do Barreto era riscado por fábricas e casinhas em vilas de operários. Políticos, partidos e sindicatos brotavam pelas ruas disseminando suas ideias para uma população atordoada pelo trabalho. Carlinhos nasceu em uma dessas casinhas. Um dia, o menino de sete anos resolveu se deitar mais cedo que de costume. A atitude inusitada era resultado da febre alta. Sentia tanto calafrio, que os dentes atritavam uns nos outros. Daquele pequeno quarto com caminha humilde nunca mais sairia com vida. Foram semanas de tentativas de médicos, padres, pastores, benzedeiras, lutando para que ele se reestabelecesse. Seus pais ficavam em vigília o tempo todo. A única coisa que o pequeno dizia, entre seus delírios, era a frase ‘cuidem da Emília’. Claro que só vim a saber disso muito mais tarde, praticamente adulta. A agonia de Carlinhos pela vida comovera o bairro. O enterro no Maruí virou uma romaria. Eu ainda não respondi sua pergunta, meu filho. Agora é que vem uma das partes mais misteriosas da história. Após o sepultamento, à noite, uma vizinha da família Neves resolveu voltar ao cemitério. Não me pergunte o que ela foi fazer lá. Indo parar direto onde jazia o menino, a roliça senhora encontrou em cima da cova um bilhete que dizia: ‘avise aos meus pais que estou bem, avise aos parentes e amigos que rezarei por eles, avise à Emília que sinto saudades dela’.”
A voz de vovó começou a falhar, engasgar. Vez por outra a lembrança a entristece. Houve, momentaneamente, uma desarticulação entre seus pensamentos.
“O bilhete gerou um burburinho no Barreto. Uns acreditavam que era obra de Deus, outros que a bondade do menino o transformou em anjo e havia aqueles, bem poucos, é verdade, que achavam tudo uma invenção da voluntariosa senhora. Sabe como é, meu neto, o povo tem necessidade de crer. Não deu uma semana para começarem os devotos a depositarem pedidos, fotos de parentes doentes, entes mortos, santinhos e flores no túmulo. Em um lapso de tempo – da noite para o dia –, Carlinhos deixou de ser uma criança. Tornara-se uma divindade. O que você viu naquele dia de finados foi justamente isso. Cinquenta anos depois de sua morte, o pobre menino da vila operária,
falecido precocemente, mantinha firme a crença de milagreiro.” “E a senhora, vovó́, o que acha?”
“Minha opinião é muito parcial. Não tenho isenção para dizer nada. Apenas penso que cada um conta a sua experiência. E se lhe faz bem, cura seus males, quem sou eu para colocar palavras na boca de Deus? Cada vez mais o mundo é dos que têm fé e mais ainda daqueles que a propagam. Minha cruzada é ajudar sua mãe a criar você. Vamos dormir, descansar. Se deixar, você vara a madrugada!”
“Mas, vovó… A senhora não falou tudo. A tal Emília do bilhete era mesmo você? Como o Carlinhos sabia seu nome? A senhora brincava com ele?”
“Meu filho, está muito tarde, deixe a história para outro dia. Não carecemos dela.” “Eu queria tanto saber…”
“Quando você quer uma coisa…! Bom, vamos lá… Nunca tinha visto Carlinhos. Não morava perto dele, nunca soube dele. Isso era o que eu achava. Até que um dia…”
Das crenças do mundo a mais longeva é da continuidade da vida. Passam faraós, reis, presidentes, primeiros-ministros, sacerdotes, ideologias. Só fica o desejo do ‘Ser’ em imaginar a sua eternidade. Quando escolho, domino, crio, a finitude é palavra pouco amistosa. A ideia de virar cinza ao relento é antagônica à existência humana. Há um sentido na morte. Eis a religião.
Minha avó foi batizada na Catedral de São João, no centro da cidade de Niterói. Passou a infância e a adolescência com a pecha de carola na família e entre os amigos. Missas aos domingos eram sagradas, assim como o oratório em seu quarto. Nunca entendi muito o porquê de as pessoas ficarem horas rezando para uma imagem. Deus não está em todos os lugares? Não somos feitos à sua imagem e semelhança? Ora, deveríamos rezar de frente para um espelho. Assim aliviaríamos os santos dos nossos dissabores. O papo seria reto, entre nós e Deus. Mas quem deseja ter tamanha responsabilidade sobre seu destino? Além do mais, Deus ficaria com a última palavra.
Sem conhecer o pai, falecido precocemente, vovó ajudou sua mãe no sustento dos quatro ir- mãos. Se a vida foi difícil, o espírito nunca sucumbiu aos problemas do cotidiano. Longe disso. Costurou para as madames, criou três filhas e, de quebra, assumiu parte da responsabilidade de cuidar dos netos durante o trabalho da minha mãe e das minhas tias. Cheguei a conhecer a bisa Aninha. Privilégio de bisneto mais velho. Já meu bisavô, repousou no silêncio dos mortos. Nunca soube nem o seu nome…
“Sempre achei, meu filho, que poderia fazer tudo na vida. O iminente terremoto é encoberto pela brisa da véspera. Cuidava de todos e esqueci de cuidar de mim. Estava na barca indo para o Rio quando um homem negro sentou ao meu lado. Não disse uma palavra. Nem precisou. Entregou-me um pequeno bilhete. Achei aquilo muito estranho e quase amassei o papel e joguei no lixo. Uma mão me segurou e resolvi lê-lo. ‘Carlinhos pediu para você se cuidar. É hora de parar um pouco’. Menino, fiquei pálida. De novo Carlinhos entrava na minha vida e de novo através de um bilhete mandado não sei de onde. Confesso que tremi e por pouco não volto na mesma barca para Niterói. Cheguei em casa e rezei com todas as minhas forças para a Virgem Maria me explicar o que estava acontecendo. Fui buscar ajuda na Igreja, mas o padre deu pouca atenção às minhas angústias. Mandou que eu rezasse todos os dias e comparecesse a duas missas por semana, no mínimo. Caíra por terra a única pessoa que poderia me entender. Ou você acha, meu pequeno, que sua avó iria explicar aquilo para alguém? Me chamariam de louca! Continuei tocando a vida normalmente. Residiu aí meu erro. Um mês exato do encontro com o homem nas barcas fui acometida de um mal súbito, que me deixou acamada durante dois meses, entre a vida e a morte”.
“A senhora nunca me contou essa história e nem a mamãe!”
“Remoer doença é mais do mesmo, meu filho. A vida prima pela jovialidade. Depois disso não criei sua mãe, suas tias, trabalhando como uma moura? Para quê contar tragédias? A vida encerra quando se vai, e eu, graças a Deus, fiquei. Quase dois meses na cama adiando a morte com apenas 19 anos de idade. Nas três primeiras semanas, minha mãe chegou a preparar a extrema unção. As inúmeras missas, rezas e os cuidados médicos fracassaram. O meu fim era dado como certo. Na manhã de quinta-feira, acordei tonta dos remédios e sem uma alma no quarto. Apenas a janela aber- ta com um vento frio. Ao virar a cabeça para o lado da cômoda esquerda, avistei uma foto. Estiquei a mão para pegá-la e, antes de olhar o retrato, li o texto: ‘minha linda do coração, segure essa foto com você e em breve voltará a viver a vida dos bons’. Quando olhei a foto… era Carlinhos!!!!! A mesma imagem vista na lápide naquele dia do cemitério.”
Eu estava de queixo caído com tudo aquilo. Nunca, em todos os meus 10 anos de vida, tinha ouvido uma história tão incrível. Será que minha avó estava inventando tudo aquilo para que eu finalmente pegasse no sono? Será que ela já estava dormindo e sonhando em voz alta? Pedi um copo d’água. Ao longe vi minha avó arrastando a perna e com o braço esquerdo inclinado para o abdome. A sua cabeça era branquinha como a neve. Dizem que a minha cabeleira se deve à sua genética. Pode ser. Vovó morreu sem faltar um tufo em seu couro cabeludo!
“Peguei o retrato e escondi debaixo do travesseiro. Aos poucos os parentes e o médico se acotovelaram no quarto. Não dei uma palavra o dia inteiro. Tinha força para falar, mas a confusão mental era tamanha que paralisou o meu desejo. Os mais chegados achavam que era sintoma de piora. Só semanas depois perceberiam que aquilo era o início do retorno da minha saúde. Isso mesmo, meu filho, a cor voltou aos poucos ao meu rosto, tinha vontade de comer, andar, falar e trabalhar. Estava me sentindo ótima, enquanto o médico acompanhava perplexo o meu reestabelecimento. Há ciência que não se aprende na escola. Eu fui a prova cabal disso. Fiquei apenas com um probleminha: o lado esquerdo meio paralisado. No mais, estou aqui, décadas depois, cuidando de você.”
“Foi Carlinhos que a curou, vovó?”
“Vou contar o resto para você se preparar para dormir. Agora, realmente, já está tarde, e amanhã seu pai vem te pegar cedo. Fiquei pensando muito em Carlinhos depois dos últimos acontecimentos. Ninguém conseguia me dar uma luz, um caminho para entender aquele momento. O peito apertava. Precisava descobrir um sentido para tudo aquilo. Tem vez que a indefesa lebre vira caçadora. Resolvi visitar Dalva, futura madrinha da sua mãe e pessoa muito influente na espiritualidade, em Niterói. Dalva e Fernando, seu marido, eram amigos de anos. Foi ela, inclusive, que criou sua mãe durante um bom tempo, quando a coisa aqui em casa ficou apertada. Eles moravam na Barreira, no bairro do Caramujo, em uma casa acoplada ao Centro de Umbanda. Já ia caminhando em direção à casa do casal quando avistei, no meio do terreiro, o mesmo homem das barcas. Quando cheguei, a sessão iniciava. Dalva trajava um opulento vestido branco, cheio de babados em escala e comandava a cerimônia ao lado de umas trinta pessoas. Entrei no centro e me sentei em uma cadeira vazia para aliviar minhas pernas cambaleantes. Fiquei impávida. Sempre senti uma coisa forte na Umbanda, mas nada comparável àquele momento. Meus olhos grudaram no ritual e no desconhecido. Ele tinha inúmeros colares e uma túnica creme na cabeça. Era maior do que parecia, mais forte que o normal, sobressaindo sua opulência corporal. Quando pestanejei, o homem negro se aproximou e soltou uma frase que ecoou nos meus ouvidos como um furacão: ‘Carlinhos era o seu pai, Antão’. Mas vamos dormir, pequeno, amanhã arrumo você cedo e mais tarde vou à macumba…”
Lembrei dessa história essa noite, quando não conseguia dormir. E para curar a insônia, guiado
pela avó Emília, levantei para escrever… É como se diz, não se deve confiar em um insone.
Para Dalva, Mário, Emília, Fernando e Carlinhos (in memoriam).