A manicure
Ela percebia que o olhar dele mudara de direção. Virava e mexia contemplava o horizonte e cada vez menos seus vivos olhos castanhos. Ele andava agitado, mão sempre no celular, ansioso como se esperasse por alguma notícia. O que havia mudado? Namoravam há seis anos e as famílias chegaram a combinar o futuro do casal.
Ele sempre a convidava para sair em bares de samba, cinema, praia de Itacoatiara ou comer aos domingos na Colubandê – tipo de churrascaria universal de periferia com direito a teclado, toalha quadriculada na mesa e crianças correndo entre os garçons malabaristas. Os convites rareavam, assim como os presentes semanais.
Como o hábito faz o monge, ela sentia saudades dessa época de encantamentos…
Com o tempo, a preocupação com o distanciamento aumentou. Passou a conversar com seus pais:
– Minha filha, deixe disso. É só uma fase. Todo casal passa por isso. Eu e sua mãe brigamos sempre e estamos juntos há trinta anos. Brigar faz parte da relação.
– Seu pai tá certo, menina. Vocês se conhecem desde crianças, aqui do bairro do Fonseca, sabem que são de boa família e o mundo aí fora não tá pra peixe!
Seus pais sempre deram duro pra sobreviver. Era o perfil de família que permanecera unida para ultrapassar os muitos obstáculos do dia a dia, mas o conforto da fala dos velhos não aquietou o seu coração. Continuava desconfiada de que o trem estava descarrilhando.
Toda tentativa de abordar o assunto com ele era em vão, sempre ouvia a mesma coisa:
– Que é isso, meu amor, adoro você! Claro que não tenho outra pessoa. Você cismou com isso, meu amor, vira o disco.
Ele era o típico militar nascido em comunidade. Sargento do exército, daqueles apolíneos PQD’s (paraquedistas conhecidos como boinas vermelhas), espécie de tropa de elite das forças armadas, nascera para se casar cedo, como seus pais. De poucas palavras, tinha convicção que o espaço da rua era do homem. A sua jovialidade e o longo tempo de namoro eram um caminho aberto às novidades, àquelas tentações dionisíacas que enfrentamos no decorrer da vida. Aliás, cara leitora, que jovem, ainda iniciando sua trajetória sexual, resiste aos encantos da experiência e da beleza?
De repente, o celular dele tocou em cima da mesa da sala. Ela estava em sua casa e ele no banho. Depois de uma pausa, o celular voltou a tocar novamente. Ela evitou pegar o aparelho. Mas a insistência do toque despertou sua curiosidade e inibiu o seu pudor.
Sua mão transpirava. Era a primeira vez que mexia em seu celular. Ao atender, ouviu a pergunta: “já tá em casa?”. Ficou estática e taciturna. Seria aquilo a confirmação da traição? Resolveu sair de fininho de casa para ele não perceber suas inquietudes. Na varanda, escreveu no antebraço o número que ligara, 2678…
Como o mundo era mais humano para os casais sem o celular. Escolher um celular, seu formato, cor, capacidade, é praticamente escolher um tipo de relação amorosa. Existe uma legião de separados da era celular.
Ela pensou: “e agora, o que fazer?”. Oscilou por vários minutos entre confrontá-lo, procurar o en- dereço do telefone ou lavar as mãos e continuar com uma dúvida angustiante. Às vezes, o silêncio é o senhor da razão, mas não quando se é jovem.
Existem mulheres com alma detetivesca. Conheci algumas. Uma já era senhora, ou quase senho- ra, vizinha da minha casa no centro de Niterói. Monitorando o celular do marido, passou a segui-lo pelos quatro cantos do Rio de Janeiro. Açodada, raivosa, viu sua relação ir embora pouco a pouco no ranger dos dentes para todos e tudo que coadunassem com a amante. Sua alma detetivesca es- tava mais para a figura central dos romances de Leonardo Padura, o detetive Mário Conde, irascível e truculento frente aos seus interlocutores. O contrário do detetive Espinoza, de Luiz Garcia-Roza. Ela era muito nova para ter uma personalidade envolvente, sensitiva e dedutiva como Espinoza.
Resolveu ligar para o número. Do outro lado, descobriu que era um salão de cabeleireiro, pertinho da sua casa. “Que coisa estranha”, pensou. Será que ele tem um caso com alguma conhecida? Nem posso imaginar isso! A frase “Você já chegou em casa?”, martelava em sua cabeça. Na casa da sua mãe, a noite foi longa e cheia de reflexões.
No dia seguinte, ela pintou no salão às nove horas da manhã. Resolveu fazer os pés e as mãos! Sentou-se em frente à única manicure livre. Uma mulher linda, de uns 35 anos, quase dez anos mais velha que ela.
– Menina, você tem filho?
– Ainda não.
– Eu tive quase com a sua idade, tipo 24 anos. Meu filho hoje tem 16 anos. O pai abandonou logo, sumiu. Como sempre os homens fazem. Nunca mais vi. Difícil, menina, criar filho assim.
– Filho só mais velha. Muito mais velha. Preciso ter minha independência financeira antes, sair da casa dos meus pais. Em breve me caso e mais à frente volto a pensar no assunto.
– Que bom, minha filha, que você pode planejar seu futuro. Isto é pra poucos!!! Deus agora colo- cou um anjo na minha vida. Um rapaz generoso, carinhoso, amável. E sabe de uma coisa? Nesses seis meses que estamos juntos parece um pai para o meu filho. Até com dinheiro ele me ajuda. Só não é mais presente porque trabalha muito como paraquedista do exército. Ô, moreno bonito…
Ela levantou a cabeça mirando fixamente a boca carnuda e os seios proeminentes da manicure.
Seus olhos se encheram subitamente de água. Começou a sentir frio nas pontas dos pés.
– E esse seu namorado mora onde? – Perguntou com a voz falseando.
– Mora aqui na redondeza, no bairro do Fonseca. A família toda dele é daqui. Ainda não os co- nheci. Parece que a mãe é muito ciumenta e tem uma ex-namorada, daquelas queridinhas da famí- lia, que gruda no seu pé. Aquele tipo de menininha mimada, entende? Melhor esperar tudo acalmar e conhecer a família dele na hora certa. Não acha, minha filha?
Ela ouviu religiosamente, até a última palavra, como se fosse uma personagem de Nelson Rodri- gues, segurando choros e calafrios.
Unhas prontas, levantou-se vagarosamente da cadeira, pegou sua bolsa, andou em direção à porta e foi para casa.
Até hoje ela não tem namorado, mas continua pintando as unhas de vermelho e cortando o ca- belo no mesmo salão.
Para os casais que, em meio a pandemia, nem têm o direito de ter amantes.